"É claro que você termina se tornando quem você é".

"É claro que você termina se tornando quem você é".

Oi, quanto tempo, tanta coisa mudou desde que vc saiu. Na verdade, acho até que tudo continua igual, mas acho que eu mudei muito. Hoje consigo entender coisas que você já havia me adiantado faz tempo. E acaba ficando mais difícil avançar. Muitas vezes, fico tentando não ver o que eu vejo. Porque seria muito mais fácil. Mas não tem mais jeito, uma vez que você enxergou o cenário completo, exatamente do jeito que ele é, não tem mais como fingir que não viu. Nesse sentido, todos os eventos e iniciativas se tornaram muito vazios para mim. Antes as falas, os discursos me encantavam, os eventos, os treinamentos me motivavam. Eu confiava 100% nos processos, na justiça e que estávamos em “boas mãos”.  Em que o certo é o certo, e o errado é o errado. E que existia um viés de meritocracia em tudo. Só que agora, depois de ver tanta coisa e de ter passado pelos últimos acontecimentos na minha própria carreira, parece que não dá mais para continuar. Acreditar passou a necessitar de um certo esforço, o que antes era natural agora me demanda tempo e esforço consideráveis. A pior parte é que passei acreditar que todos os lugares são iguais, que todos os grupos são constituídos dos mesmos “papéis”, que todas os lugares são exatamente iguais. Um olhar desesperançoso e que não combina comigo, por isso, é tão invasivo, nocivo e tão prejudicial.

Tem um lado ainda mais complicado nisso tudo, e até atitudes do “bem” passaram a ser vistas por mim, como teatrais e vazias de conteúdo. Ocorreu um descolamento gigante entre a teoria e a prática, principalmente dentro de mim. Ouço até algumas pessoas que estão elaborando da mesma forma que a minha, mas acho que não é algo que esteja na mente da maioria das pessoas aqui. E com essa ruptura, eu me desconectei também, não vejo nenhum propósito, nada que me chame, me convoque para fazer mais e fazer maior. Parece que o esperado é o certo a ser feito, nada além do esperado. Calibrar essa intensidade tem sido o principal fator de desaceleração e, de certa forma, de desmotivação, desconstrução de um sonho, de um desejo maior. A rotina passou a saltar mais aos olhos do que qualquer outra coisa, e com rotina quero enfatizar o quanto o mundo se apequena e se reduz a cumprir alguns marcos e compromissos e nada além. É como se o "novo" já nascesse "velho".

Aliado a isso, descobrir uma doença, que é bem simbólica para mim, é a somatização de tudo isso. É o lado concreto desse processo na minha vida pessoal. Infelizmente ou felizmente aconteceu e da forma que aconteceu. Ainda tenho para mim, que esse ‘freio” foi na verdade o que alavancou todo um olhar para dentro e investir mais em cuidar de mim mesma e daí essa descoberta antecipada do que poderia ser um grande e dificultoso problema futuro. Por isso tenho mixed feelings e me pego muitas vezes agradecendo, com todas as minhas forças, tudo que estou vivenciando. Mas existe o lado prático, o dia a dia nesse novo contexto de saúde, sem nenhuma romantização. E com o tratamento, vem também os efeitos colaterais e a exacerbação de tudo que te escrevo aqui. Isso mesmo que disse, chego a agradecer essa doença que me acometeu, porque ela foi capaz de freiar, de me trazer para o ponto central, de questionar algumas crenças e de moldar novos comportamentos. De evidenciar o que de fato importa. O tratamento em si, o fato de tirar o controle direto da sua vida, de te expor ao significado da vida, de filtrar o que importa, de selecionar também quem importa.

A mesma sensação da pandemia, que muitos de nós tivemos e nos “adaptamos”, mas agora como sendo a minha pandemia particular. Muita coisa já está entendida e diria que até aceita dentro de mim.

Costumo dizer que não foi uma reforma, mas uma revolução! O que não impede de viver as oscilações, talvez naturais, visto que fui forçada a enxergar, não aconteceu assim naturalmente, foi algo mais incisivo, de uma hora para outra e com a força que revoluções costumam ter dentro da gente. Talvez uma pior parte para mim, se é que nesse contexto, seja possível ainda escolher o pior entre os piores, foi entender que as pessoas são o que são. Ninguém realmente dá o que não tem. Parece óbvio e é, na teoria Na prática sempre fica aquela expectativa de que comigo seria muito diferente. E ai, me questionei bastante em relação a ter dedicado meu tempo e arriscado minha carreira por tanta gente. Indo da ingenuidade, passando pelo desperdício e culminando com a burrice propriamente dita. Mas é como culpar a vítima, totalmente insano, não faz o mínimo sentido, né? Mas sempre digo que sentir é diferente de agir. Sentir é inegociável, é permitido, mas agir é uma escolha. Você escolhe como agir, como irá reagir a tudo e a todos. Essa sensação é como se eu tivesse sido enganada em um primeiro momento. Mas ai, vai ficando pior, porque você percebe que tudo já estava posto e muito claro, você não conseguiu ver. Então, a conclusão rápida que você formula nas suas hipóteses é que foi você que se enganou totalmente, foi um erro "do tipo seu". As pessoas só rodaram suas inseguranças, não foi nada pessoal. Pessoal foi o tempo que você dedicou, foi o seu tempo perdido, foram as suas expectativas. Esse ponto mexeu muito com meu ego, com meu brio, abalou meu autoconceito, porque você se vê “não inteligente” em um primeiro momento. Você leva tempo para entender, que a inteligência esteve ao seu lado durante todo o tempo.

Você se questiona muito, sobre o que aconteceu com você durante tantos anos para simplesmente não ver, sequer perceber o que já saltava aos olhos. Mais do que isso, você abriu as portas da sua casa, você deu não só o que te sobrou, mas você tirou de você para beneficiar os outros. E se dar conta que eles são uma massa, amorfa, sem capacidade de fazer qq mudança. Você entende que não há visão crítica alguma, zero dialética. Muitas vezes sem capacidade de raciocínio, sem capacidade de enfrentamento e, pior, sem vontade alguma, sem garra, sem gana. Em um primeiro momento foi desesperador me dar conta, dá uma sensação de que sou de “outro mundo”. Não por arrogância mas por incompatibilidade mesmo. E ai, vão aterrizando os sentimentos, você vai montando um plano, endereçando ações e seguindo em frente. De tudo o que vivi nos últimos anos, a melhor de todas as lições é entender que a vida continua. E continua bem, firme, direcionada, mais robusta, mais clara, você passa a entender o que é empoderamento na prática, sem subterfúgios, sem muletas, você se torna o empoderamento. Essa é a parte que meus olhos reconhecem o que hoje enxergam por si só, e meu coração vibra muito com a pessoa que me tornei. A conexão entre a mente, o corpo e algo mais, esse algo intangível, difícil de colocar em palavras, mas que é tão fácil sentir e ver. E por fim, caio na frase feita de dizer que “ainda bem que tudo isso aconteceu” ainda bem que estou aqui para experimentar e vivenciar tudo isso. Nunca antes estive tão feliz, tão centrada e tão “plena”, acho que essa é a melhor palavra. Como se os vazios tivessem sido enfim preenchidos e você se sente uma pessoa pra lá de especial. Pronta para novos voos e, no meu caso, um super voo, em direção ao desejo maior, que sempre esteve ali, talvez adormecido ou impedido de se colocar. Mas hoje não, hoje estou lá, junto a todos eles, reconhecendo e sendo reconhecida e construindo algo mais coerente com a pessoa que eu sou. "É claro que você termina se tornando quem você é".