Na linguagem da psicanálise, a travessia remete ao enfrentamento das nossas faltas, das nossas angústias e das nossas fantasias mais profundas. É um percurso de desconstrução e reconstrução, que nos desafia a sair de uma posição fixa — frequentemente confortável, mas paralisante — em direção a algo desconhecido, mas genuinamente nosso. A travessia não é só movimento físico ou externo; é uma jornada interna, um desejo de transformar o que está cristalizado em algo vivo e pulsante.
Freud já nos alertava sobre o caráter pulsional do desejo, essa força que nos move, nos incomoda e nos leva a buscar algo além. Mas o desejo de travessia não é apenas um desejo de buscar o outro ou um objeto perdido; é um desejo de atravessar a própria condição humana, marcada pela incompletude. É reconhecer que, para viver, precisamos lidar com a falta, com o vazio, com o incômodo de não sermos inteiros.
Lacan diria que o desejo nunca é algo que se satisfaz completamente; ele é sempre o desejo de "algo mais". E a travessia exige coragem para encarar o "a mais" do desejo, esse resto que não pode ser simbolizado ou preenchido. Em sua teoria, Lacan nos apresenta o conceito do matema do fantasma ($ ◇ a), onde o sujeito se coloca em relação a seu objeto de desejo (o objeto a) por meio de uma fantasia que organiza e sustenta sua existência. A travessia do fantasma, como propõe Lacan, é o momento em que o sujeito confronta essa estrutura fantasmática que o amarra, que lhe dá uma falsa segurança, mas que também o aprisiona.
A travessia do fantasma não implica destruir ou eliminar o desejo, mas deslocá-lo, desidentificando-se da fantasia que organiza seu modo de se relacionar com o mundo e consigo mesmo. É nesse movimento que o sujeito se liberta da ilusão de completude oferecida pelo fantasma e se abre para o real — esse lugar que Lacan define como aquilo que escapa à simbolização, aquilo que nunca cessa de não se inscrever.
A travessia, então, não é encontrar respostas definitivas ou "resolver" a falta, mas sustentar-se na angústia e nas incertezas que ela traz. É no espaço entre a demanda (aquilo que queremos do outro) e o desejo (aquilo que realmente nos move) que a travessia se desenha. Muitas vezes, ficamos presos na repetição, nas mesmas escolhas, nos mesmos caminhos, porque é mais seguro permanecer no conhecido do que arriscar-se no novo. Mas o desejo de travessia nos convida a romper com essa lógica, a questionar o "por que continuo aqui?" ou "o que espero encontrar repetindo o mesmo roteiro?".
A travessia implica perda. Implica abrir mão de identificações antigas, de certezas confortáveis, de lugares onde nos protegemos do que nos dói. É preciso perder para encontrar. Winnicott, ao falar sobre o processo de amadurecimento, aponta que só nos tornamos verdadeiramente criativos e autênticos quando conseguimos suportar a perda da onipotência, a frustração e a realidade do outro como diferente de nós. E isso, inevitavelmente, faz parte da travessia.
No fim das contas, o desejo de travessia é o desejo de ser sujeito, de se responsabilizar pela própria história. Não se trata de saber exatamente onde vamos chegar, mas de não aceitar permanecer onde estamos quando o que pulsa dentro de nós pede movimento. A travessia é o ato mais radical de criação de si mesmo, um percurso em que aprendemos a viver com a falta e, ainda assim, a encontrar sentido nela.
Então, eu pergunto: você tem desejo de travessia?